terça-feira, 11 de março de 2014

Aplausos - VLADIMIR SAFATLE


É de admirar a simbologia. Na semana passada, o Rio de Janeiro foi palco de uma greve de garis. Dificilmente encontraremos uma classe de trabalhadores tratados de maneira tão explícita como subempregados desqualificados.
Recolher lixo, colocar a mão naquilo que os outros desprezaram e jogaram fora parece transformar tais pessoas na representação natural do fracasso humano, gente que alguns prefeririam não ver, pessoas invisíveis.
Assim, quando os garis do Rio de Janeiro declararam greve, logo na semana do sacrossanto Carnaval, o governo municipal compreendeu isso como um verdadeiro crime.
Como tais pessoas invisíveis ousavam manchar o mais belo cartão-postal do país?
Talvez não por outra razão o alcaide do momento, o senhor Eduardo Paes, resolveu colocar seu quepe de capitão de fragata e declarar estarmos, pura e simplesmente, diante de um motim.
Garis em greve só podem ser amotinados que esquecem qual é o seu lugar na escala de valor humano. Ou então, o que não deveria nos surpreender, agentes de Cuba, da Coreia do Norte, capachos de Hugo Chávez e comandados do último vilão do 007 estariam infiltrados na Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) pervertendo a boa índole do nosso povo.
Mas, sem se incomodar com a situação de amotinados de solo firme, lá foram os garis a fazer uma marcha de greve pelas ruas do Rio. E eis que o improvável acontece: a população sai às ruas para aplaudi-los. Nos meus 40 anos de passagem pelo mundo sublunar, não me lembro de ter visto grevistas serem aplaudidos na rua por populares. Dessa vez foi diferente.
Isso demonstra como parcelas da população não querem esquecer a situação de desprezo e espoliação na qual os trabalhadores pobres brasileiros vivem.
Eles estão dispostos a passar por situações individuais de desconforto, como não ter seu lixo recolhido, a continuar fingir não ver que ainda vivemos em uma brutalidade social insuportável.
Aplaudir sempre foi um gesto de quem reconhece a dignidade do que vê. Aplaudimos artistas pela dignidade da beleza. Aplaudimos oradores pela dignidade da inteligência e da força retórica. Aplaudimos garis pela dignidade dos humilhados que não temem bravatas e ameaças.
As pessoas que aplaudiram garis em greve deram a este país uma dignidade que nem sempre aparece.
Eles fizeram um pequeno gesto de forte carga política e que recupera o sentido do afeto político mais importante: a implicação e a solidariedade dos que deixam de lado, ao menos por um momento, interesses individuais. Naquele dia, o Rio de Janeiro mostrou ao país o caminho a seguir.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Desigualdades: Injustiça tributária no Brasil

FERNANDO RUGITSKY
A disputa em torno do IPTU mostra que não será uma tarefa fácil enfrentar a regressividade do sistema tributário brasileiro
Em setembro do ano passado, o IBGE divulgou a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad) referente a 2012, indicando que, após anos seguidos de queda, a desigualdade medida por meio do índice de Gini ficara estável.
Alguns dias depois, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, anunciou que atualizaria a base de cálculo do IPTU, tornando-o mais progressivo. Em dezembro, no entanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu liminar suspendendo a alteração proposta e disputas judiciais semelhantes logo se espalharam para outras cidades.
Ambas as notícias foram intensamente discutidas. Faltou, no entanto, quem apontasse uma importante conexão entre elas.
Apesar de inegável avanço na última década, o Brasil ainda possui uma das piores distribuições de renda do mundo. Como o Gini é uma medida para lá de intransparente, o economista chileno Gabriel Palma tem optado por usar a razão entre o percentual da renda nacional detido pelos indivíduos que estão entre os 10% mais ricos e aquele detido pelos 40% mais pobres.
Verifica-se, por esse indicador, que a renda média de um indivíduo rico é cerca de 15 vezes maior que a dos mais pobres no Brasil. Na maioria dos países, a diferença raramente é superior a oito.
Ainda que a desigualdade tenha muitos determinantes, o sistema tributário brasileiro contribui para atualizar continuamente o fosso que separa os ricos e os pobres. O problema é a sua regressividade, ou seja, aqueles que têm mais pagam menos, enquanto os que têm menos pagam mais.
Estudo realizado por Sean Higgins e Claudiney Pereira mostra que os impostos indiretos (que incidem sobre o consumo) aumentam o índice de Gini no Brasil, compensando o efeito equalizador das transferência governamentais. Levando em conta os efeitos do sistema tributário, os índices de Gini dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) caem mais de 30%. No Brasil, essa redução é de menos de 6%.
Por trás da aparente irracionalidade, o sistema tributário brasileiro tem função clara: manter o nível da desigualdade. A pesquisa de Higgins e Pereira mostra que o problema reside no fato de que os impostos diretos (sobre a renda e sobre o patrimônio, como o IPTU) representam apenas 45% da arrecadação. O restante é arrecadado via impostos indiretos, dentre os quais o ICMS e o ISS representam conjuntamente quase um quarto da receita total. O IPTU, por sua vez, representa apenas 1,2% de toda a arrecadação.
O voto do desembargador que barrou a mudança do IPTU menciona que a "alteração da carga tributária no principal centro financeiro, corporativo e mercantil da América Latina irá atingir as mais diversas relações econômicas, podendo inibir seu crescimento".
Tal raciocínio tem o cheiro azedo daquele velho bolo que precisava crescer antes de ser repartido. E é falacioso. O economista francês Thomas Piketty, referência incontornável para estudos sobre desigualdade, tem demonstrado que o nível de progressividade tributária compatível com o crescimento econômico é muito maior do que o adotado na maior parte dos países.
O argumento contrário depende do pressuposto absurdo de que as pessoas são remuneradas de acordo com a sua produtividade, e não com a sua capacidade de apropriar-se do excedente produzido. Como se os executivos das empresas fossem centenas de vezes mais produtivos do que seus empregados.
Se o objetivo for reduzir a concentração de renda no Brasil, não há como evitar enfrentar a regressividade do sistema tributário. E isso passa por duas medidas: aumentar o peso dos impostos diretos e aumentar a sua progressividade.
A disputa em torno do IPTU mostra, contudo, que essa não será uma tarefa fácil. Enquanto o partido da regressividade tem cerrado suas fileiras e aprofundado sua mobilização, a bandeira do combate decidido à desigualdade ainda aguarda alguém para empunhá-la.