terça-feira, 11 de março de 2014

Aplausos - VLADIMIR SAFATLE


É de admirar a simbologia. Na semana passada, o Rio de Janeiro foi palco de uma greve de garis. Dificilmente encontraremos uma classe de trabalhadores tratados de maneira tão explícita como subempregados desqualificados.
Recolher lixo, colocar a mão naquilo que os outros desprezaram e jogaram fora parece transformar tais pessoas na representação natural do fracasso humano, gente que alguns prefeririam não ver, pessoas invisíveis.
Assim, quando os garis do Rio de Janeiro declararam greve, logo na semana do sacrossanto Carnaval, o governo municipal compreendeu isso como um verdadeiro crime.
Como tais pessoas invisíveis ousavam manchar o mais belo cartão-postal do país?
Talvez não por outra razão o alcaide do momento, o senhor Eduardo Paes, resolveu colocar seu quepe de capitão de fragata e declarar estarmos, pura e simplesmente, diante de um motim.
Garis em greve só podem ser amotinados que esquecem qual é o seu lugar na escala de valor humano. Ou então, o que não deveria nos surpreender, agentes de Cuba, da Coreia do Norte, capachos de Hugo Chávez e comandados do último vilão do 007 estariam infiltrados na Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) pervertendo a boa índole do nosso povo.
Mas, sem se incomodar com a situação de amotinados de solo firme, lá foram os garis a fazer uma marcha de greve pelas ruas do Rio. E eis que o improvável acontece: a população sai às ruas para aplaudi-los. Nos meus 40 anos de passagem pelo mundo sublunar, não me lembro de ter visto grevistas serem aplaudidos na rua por populares. Dessa vez foi diferente.
Isso demonstra como parcelas da população não querem esquecer a situação de desprezo e espoliação na qual os trabalhadores pobres brasileiros vivem.
Eles estão dispostos a passar por situações individuais de desconforto, como não ter seu lixo recolhido, a continuar fingir não ver que ainda vivemos em uma brutalidade social insuportável.
Aplaudir sempre foi um gesto de quem reconhece a dignidade do que vê. Aplaudimos artistas pela dignidade da beleza. Aplaudimos oradores pela dignidade da inteligência e da força retórica. Aplaudimos garis pela dignidade dos humilhados que não temem bravatas e ameaças.
As pessoas que aplaudiram garis em greve deram a este país uma dignidade que nem sempre aparece.
Eles fizeram um pequeno gesto de forte carga política e que recupera o sentido do afeto político mais importante: a implicação e a solidariedade dos que deixam de lado, ao menos por um momento, interesses individuais. Naquele dia, o Rio de Janeiro mostrou ao país o caminho a seguir.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Desigualdades: Injustiça tributária no Brasil

FERNANDO RUGITSKY
A disputa em torno do IPTU mostra que não será uma tarefa fácil enfrentar a regressividade do sistema tributário brasileiro
Em setembro do ano passado, o IBGE divulgou a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad) referente a 2012, indicando que, após anos seguidos de queda, a desigualdade medida por meio do índice de Gini ficara estável.
Alguns dias depois, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, anunciou que atualizaria a base de cálculo do IPTU, tornando-o mais progressivo. Em dezembro, no entanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu liminar suspendendo a alteração proposta e disputas judiciais semelhantes logo se espalharam para outras cidades.
Ambas as notícias foram intensamente discutidas. Faltou, no entanto, quem apontasse uma importante conexão entre elas.
Apesar de inegável avanço na última década, o Brasil ainda possui uma das piores distribuições de renda do mundo. Como o Gini é uma medida para lá de intransparente, o economista chileno Gabriel Palma tem optado por usar a razão entre o percentual da renda nacional detido pelos indivíduos que estão entre os 10% mais ricos e aquele detido pelos 40% mais pobres.
Verifica-se, por esse indicador, que a renda média de um indivíduo rico é cerca de 15 vezes maior que a dos mais pobres no Brasil. Na maioria dos países, a diferença raramente é superior a oito.
Ainda que a desigualdade tenha muitos determinantes, o sistema tributário brasileiro contribui para atualizar continuamente o fosso que separa os ricos e os pobres. O problema é a sua regressividade, ou seja, aqueles que têm mais pagam menos, enquanto os que têm menos pagam mais.
Estudo realizado por Sean Higgins e Claudiney Pereira mostra que os impostos indiretos (que incidem sobre o consumo) aumentam o índice de Gini no Brasil, compensando o efeito equalizador das transferência governamentais. Levando em conta os efeitos do sistema tributário, os índices de Gini dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) caem mais de 30%. No Brasil, essa redução é de menos de 6%.
Por trás da aparente irracionalidade, o sistema tributário brasileiro tem função clara: manter o nível da desigualdade. A pesquisa de Higgins e Pereira mostra que o problema reside no fato de que os impostos diretos (sobre a renda e sobre o patrimônio, como o IPTU) representam apenas 45% da arrecadação. O restante é arrecadado via impostos indiretos, dentre os quais o ICMS e o ISS representam conjuntamente quase um quarto da receita total. O IPTU, por sua vez, representa apenas 1,2% de toda a arrecadação.
O voto do desembargador que barrou a mudança do IPTU menciona que a "alteração da carga tributária no principal centro financeiro, corporativo e mercantil da América Latina irá atingir as mais diversas relações econômicas, podendo inibir seu crescimento".
Tal raciocínio tem o cheiro azedo daquele velho bolo que precisava crescer antes de ser repartido. E é falacioso. O economista francês Thomas Piketty, referência incontornável para estudos sobre desigualdade, tem demonstrado que o nível de progressividade tributária compatível com o crescimento econômico é muito maior do que o adotado na maior parte dos países.
O argumento contrário depende do pressuposto absurdo de que as pessoas são remuneradas de acordo com a sua produtividade, e não com a sua capacidade de apropriar-se do excedente produzido. Como se os executivos das empresas fossem centenas de vezes mais produtivos do que seus empregados.
Se o objetivo for reduzir a concentração de renda no Brasil, não há como evitar enfrentar a regressividade do sistema tributário. E isso passa por duas medidas: aumentar o peso dos impostos diretos e aumentar a sua progressividade.
A disputa em torno do IPTU mostra, contudo, que essa não será uma tarefa fácil. Enquanto o partido da regressividade tem cerrado suas fileiras e aprofundado sua mobilização, a bandeira do combate decidido à desigualdade ainda aguarda alguém para empunhá-la.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Esquerda no mundo: Superar divisões

VLADIMIR SAFATLE
Há uma divisão que quebrou boa parte da dinâmica criativa da esquerda mundial. Ela se deu entre aqueles que, animados pelo ímpeto de Maio de 1968, levaram a política em direção às lutas ecológicas, libertárias e aqueles que permaneceram, durante décadas de assalto ideológico neoliberal no campo do pensamento de esquerda, pautando suas ações pela sensibilidade aos conflitos de classe e pela defesa de políticas de combate à desigualdade.
Tal divisão conseguiu, por exemplo, enterrar a esquerda em países como a França e a Alemanha.
No primeiro, enquanto a extrema direita racista cresce exponencialmente, a esquerda perde sua força de sinergia por se clivar entre uma frente que agrupa comunistas, sociais-democratas radicais e outros grupos (Front de Gauche, "frente de esquerda", em francês) e os ecologistas, estirados entre arroubos em direção ao centro e lembranças de seu velho passado de esquerda.
Na Alemanha, a situação não é muito diferente, com atores bastante parecidos (Die Linke, "a esquerda", em alemão, e os verdes).
Essa realidade poderia ser diferente no Brasil. As causas ecológicas têm um radical potencial de crítica do capitalismo, por expressarem a luta contra a versão monopolista mais brutal do nosso sistema econômico --o agronegócio--, por serem fruto da problematização de uma ideia de desenvolvimento e produção que não libera os sujeitos daquilo que mais os aliena, a saber, o sequestro de seu tempo pelo tempo do trabalho.
Tais modificações, para poderem realmente ocorrer, exigem modelos de produção coletiva e de aumento da autonomia em relação ao tempo de trabalho que, se radicalizadas, podem nos ajudar a nos colocar fora da lógica do sistema econômico que conhecemos. No entanto, ao invés disto, vários ecologistas no Brasil se deixam pautar, muitas vezes, por economistas neoliberais com sua lógica ecológica Starbucks.
Por outro lado, o Brasil, com suas idiossincrasias, é um país no qual os liberais são, no fundo, contra as liberdades individuais.
Por aqui, ser liberal é, via de regra, ser contra o aborto, criticar o casamento homossexual, desconfiar das discussões sobre o Estado radicalmente laico, ridicularizar o embate contra a destruição da vida privada na esteira do "combate ao terrorismo" e ser contra a legalização das drogas. Por essas ironias do destino, quem defende liberda-de individual no cenário po-lítico-partidário brasileiro é a esquerda.
Tais elementos do cenário nacional demonstram como há um rearranjo possível do espectro político, à condição de superar velhas dico- tomias.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Socialismo é barbárie

LUIZ FELIPE PONDÉ
A esquerda está em pânico porque estava acostumada a dominar o debate público
Se eu pregar que todos que discordam de mim devem morrer ou ficarem trancados em casa com medo, eu sou um genocida que usa o nome da política como desculpa para genocídio. No século 20, a maioria dos assassinos em massa fez isso.
O Brasil, sim, precisa de política. Não se resolve o drama que estamos vivendo com polícia apenas. Mas me desespera ver que estamos na pré-história discutindo ideias do "século passado". Tem gente que ainda relaciona "socialismo e liberdade", como se a experiência histórica não provasse o contrário. Parece papo das assembleias da PUC do passado, manipuladoras e autoritárias, como sempre.
O ditador socialista Maduro está espancando gente contra o socialismo nas ruas da Venezuela. Ele pode? Alguns setores do pensamento político brasileiro são mesmo atrasados, e querem que pensemos que a esquerda representa a liberdade. Mentira.
A maioria de nós, pelo menos quem é responsável pelo seu sustento e da sua família, não concorda com o socialismo autoritário que a "nova" esquerda atual quer impor ao país. A esquerda é totalitária. Quer nos convencer que não, mas mente. Basta ver como reage ao encontrar gente inteligente que não tem medo dela.
Ninguém precisa da esquerda para fazer uma sociedade ser menos terrível, basta que os políticos sejam menos corruptos (os da esquerda quase todos foram e são), que técnicos competentes cuidem da gestão pública e que a economia seja deixada em paz, porque nós somos a economia, cada vez que saímos de casa para gerar nosso sustento.
Ela, a esquerda, constrói para si a imagem de "humanista", de superioridade moral, e de que quem discorda dela o faz porque é mau. Ela está em pânico porque estava acostumada a dominar o debate público tido como "inteligente" e agora está sendo obrigada a conviver com gente tão preparada quanto ela (ou mais), que leu tanto quanto ela, que escreve tanto quanto ela, que conhece seus cacoetes intelectuais, e sua história assassina e autoritária.
Professores pautados por esta mentira filosófica chamada socialismo mentem para os alunos sobre história e perseguem colegas, fechando o mercado de trabalho, se definindo como os arautos da justiça, do bem e do belo.
A esquerda nunca entendeu de gente real, mas facilmente ganha os mais fragilizados com seu discurso mentiroso e sedutor, afirmando que, sim, a vida pode ser garantida e que, sim, a sobrevivência virá facilmente se você crer em seus ideólogos defensores da "violência criadora".
Ela sempre foi especialista em tornar as pessoas dependentes, ressentidas, iludidas e incapazes de cuidar da sua própria vida. Ela ama a preguiça, a inveja e a censura.
Recomendo a leitura do best-seller mundial, recém publicado no Brasil pela editora Agir, "O Livro Politicamente Incorreto da Esquerda e do Socialismo", escrito pelo professor Kevin D. Williamson, do King's College, de Nova York. Esta pérola que desmente todas as "virtudes" que muita gente atrasada ou mal-intencionada no Brasil está tentando nos fazer acreditar mostra detalhes de como o socialismo impregnou sociedades como a americana, degradou o meio ambiente, é militarista (Fidel, Chávez, Maduro), e não deu certo nem na Suécia. O socialismo é um "truque" de gente mau-caráter.
As pessoas, sim, estão insatisfeitas com o modo como a vida pública no Brasil tem sido maltratada. Mas isso não faz delas seguidores de intelectuais e artistas chiques da zona oeste de São Paulo ou da zona sul do Rio de Janeiro.
A tragédia política no Brasil está inclusive no fato de que inexistem opções partidárias que não sejam fisiológicas ou autoritárias do espectro socialista. Nas próximas eleições teremos poucas esperanças contra a desilusão geral do país.
E grande parte da intelligentsia que deveria dar essas opções está cooptada pela falácia socialista, levando o país à beira de uma virada para a pré-história política, fingindo que são vanguarda política. O socialismo é tão pré-histórico quanto a escravatura.
Mas a esquerda não detém mais o monopólio do pensamento público no Brasil. Não temos mais medo dela.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Linchadores e bandidos: Frutos da ausência de coisa pública construída por uma comunidade de destino

CONTARDO CALLIGARIS
Diminuiu a exclusão, mas será que existe uma comunidade na qual valha a pena sentir-se incluído?
Querem saber se acho que o Brasil melhorou desde os anos 1980.
Se estou de bom humor, digo que sim: falo da época em que o telefone era imóvel para investimento, a inflação transformava qualquer crédito em usura, carro usado custava mais que carro novo e comprar um notebook significava "conversar" com um comissário da Varig, para que ele trouxesse o aparelho de Miami.
Se estou de mau humor, digo que não: falo de nossos estudantes que se perdem no ranking internacional, da mediocridade de grande parte da classe política, da vagarosidade dos serviços básicos e, enfim, da produtividade pífia, da ganância e da corrupção, que tornam absurdamente caro tudo o que é nacional.
Seja qual for o humor, lembro que, nas últimas décadas, diminuiu substancialmente a percentagem dos excluídos, ou seja, diminuiu aquela miséria que situa alguém num barco à parte, na deriva e sem relação com o rumo comum.
Mas logo paro: será que, ao longo dessas décadas, constituiu-se um rumo comum? Diminuiu a exclusão, disse, mas será que passou a existir uma comunidade na qual seja possível e valha a pena sentir-se incluído? Será que existe, no Brasil, o sentimento de uma comunidade de destino, passado e futuro? Será que o Brasil, como nação, existe dentro de nós que aqui vivemos?
Na noite de 31/1, no Rio de Janeiro, um garoto de rua foi encontrado nu, preso a um poste com uma trava de bicicleta no pescoço. Ele foi seviciado por uma turma de motoqueiros vigilantes. O garoto, nas fotografias, parece um filhote esgarrado; mas cuidado com a ternura: se você o encontrasse livre, com os amigos dele, no escuro do aterro do Flamengo, você procuraria ansiosamente as luzes de uma viatura. Por outro lado, provavelmente, o bando que o prendeu lhe inspiraria um medo análogo, se não pior.
Enfim, alguns se indignaram pela ação dos vigilantes. Outros felicitaram os vigilantes, conclamando que está na hora de os cidadãos de bem reagirem.
Na Folha (pág. 3, 11 de fevereiro), o debate culminou com os artigos de Rachel Sheherazade, âncora do "SBT Brasil", e Ivan Valente, deputado federal pelo PSOL: Sheherazade cansada do "coitadismo" de esquerda, que protege os criminosos, e Valente achando que a violência dos vigilantes só gera "mais violência".
Não é preciso brigar, visto que linchadores e bandidos são filhos de um mesmo problema endêmico: aqui, a coisa pública não vingou --o Estado, para nós, é uma pompa, mais ou menos ridícula, ele não é nada dentro da gente. Se não tem coisa pública, por que eu não viveria matando quem não me entrega seu relógio? Se não tem coisa pública, por que eu não lincharia quem me assalta?
Linchadores e bandidos vingam porque não vivemos num país comum (com mesmos valores, história e antepassados para nos inspirarem). Habitamos uma zona de tiro livre, ou seja, uma área de combate em que ninguém é "dos nossos", mas tudo o que mexe é um alvo permitido.
Ao longo do debate, foi citada, mais de uma vez, a receita de Nova York nos anos 90, "tolerância zero", como se fosse uma medida de repressão. Não era. Nunca foi. "Tolerância zero" era uma estratégia para fazer existir o espaço público. Sua moral: se você não quer assaltos no parque, cuide das flores. Não deixe que mijem nos canteiros, e o número dos assassinatos diminuirá. Diminuiu.
Não é que os criminosos tenham medo de flores. É que as flores manifestam que a comunidade existe no coração e nas mentes de todos (e ela vai se defender).
Por que não haveria em nós o sentimento de uma comunidade de destino? Há razões antigas, sobre as quais se debruçam os intérpretes do Brasil. Mas há também razões imediatas. Clóvis Rossi, na Folha de 13/2: "alguém precisa aparecer com um projeto de país, em vez de projetos de poder".
Em 30 anos, desde que cheguei ao Brasil, parece que só assisti aos conflitos de projetos de poder.
Mais duas notas. 1) O sentimento de uma comunidade de destino, que é o que faz uma nação, não tem nada a ver com o nacionalismo. Ao contrário, o nacionalismo surge para compensar a falta desse sentimento. Portanto, torcer no Mundial ou, como Policarpo Quaresma, falar tupi e tocar maracá, tudo isso é uma grande perda de tempo.
2) Será que, nessa zona de tiro livre, só tem espaço para linchadores e bandidos? Não, claro, há todos os outros, que são (somos) os "salve-se quem puder" --com diferenças: alguns podem fugir para Miami, outros só podem baixar os olhos e caminhar rente aos muros.
    Folha, 20.02.2014.

O economista que ajudou a forjar o Estado de Bem Estar sueco (Deficiência educacional e Deficiência na Estrutura Social)

MARCELO MITERHOF
O obituário de Myrdal
O Nobel Gunnar Myrdal é um herói da esquerda que anda esquecido; recordá-lo é um bálsamo
Uma das coisas que mais gosto de ler na Folha é a seção de obituários. Eles, paradoxalmente, proporcionam alívio no meio dos conflitos que ocupam o espaço primordial de um jornal. Em geral, tratam de pessoas pouco conhecidas, mas que deixaram uma marca: o cozinheiro querido de uma família paulistana, o jovem professor de caratê que não suportou a perda da mãe, uma senhora de Mococa, que morreu no dia em que voltou da realização do sonho de conhecer Paris etc.
Obituários também dão um sentido da perfeição da vida. "Perfeito" é uma palavra formada pelo prefixo "per", que significa "ao longo de", e pelo particípio do verbo "fazer", isto é, "feito ao longo". No sentido de ausência de falhas, a perfeição exige paciência, repetição e esmero. Uma vida se faz ao longo de si mesma. Assim, só pode ser perfeita quando acaba. Talvez venha daí a beleza de um obituário.
Ao escrever a coluna "As razões da esquerda", de 16/1/2014, deparei-me no "New York Times" com um obituário do economista sueco Gunnar Myrdal (http://www.nytimes.com/1987/05/18/obituaries/gunnarmyrdal-analyst-of-race-crisis-dies.html), cujos principais aspectos são livremente retratados a seguir.
Myrdal teve formação com forte base quantitativa e foi, nos anos 1920, um dos fundadores em Londres da Sociedade de Econometria. Mais tarde, porém, apontou que o movimento errava ao ignorar a questão da distribuição da riqueza e por não notar aspectos técnicos como "correlações não são explicações".
Em 1930, aos 31 anos, em seu primeiro livro, "Aspectos políticos da teoria econômica", Myrdal reafirma sua disposição para o embate intelectual e político, advogando que a ortodoxia distorce a teoria e a lógica para defender o status quo.
Não à toa costumava ser depreciativamente tido por economistas ortodoxos como um sociólogo. No entanto, ganhou em 1974 o Prêmio Nobel de Economia, que numa decisão salomônica foi divido com o conservador austríaco Friedrich Hayek.
Em 1976, disse que foi surpreendido pela premiação e que deveria tê-la recusado, pregando sua extinção, pois, como uma ciência "leve", a economia é carregada de juízos morais. Os economistas são influenciados por seus vieses sociais e tendem a errar quando reduzem a economia a números abstratos.
Na Suécia, nos anos 1930, Myrdal, juntamente com sua mulher, Alva (premiada com o Nobel da Paz em 1982 por seus esforços desarmamentistas), ajudou a desenhar o Estado de bem-estar social que faz do país um exemplo de riqueza e igualdade e de equilíbrio entre estímulos de competição (típica do capitalismo) e cooperação, que precisou ser politicamente construída.
Teve que defendê-lo de toda a sorte de críticas, desde um argumento convencional de que o aumento dos salários e a diminuição dos lucros em relação ao PIB reduziriam o investimento e o crescimento industrial, o que é desmentido pela rápida recuperação sueca nos anos 1930 e pela força em geral de seu capitalismo, até a tese de que a Suécia teria a maior taxa de suicídio do mundo em razão da segurança material de sua população. A resistência ideológica a uma sociedade mais igualitária é capaz de trilhar caminhos tortuosos...
Em 1944, lançou o livro "Um Dilema Americano: Problema Racial e Democracia Moderna", que dez anos depois foi citado na histórica decisão da Suprema Corte americana sobre a inconstitucionalidade da separação racial nas escolas públicas.
Myrdal admirava os EUA e acreditava que seus ideais de fundação superariam a discriminação em pouco tempo. Para tanto, reduzir a desigualdade era crucial.
Um pouco antes de morrer, em 1987, no fim da era Reagan, admitiu-se um tanto desesperançoso acerca do sucesso de sua previsão. Porém tal erro fala mais da dificuldade de sua luta do que de uma deficiência constitutiva de sua aposta.
No fim dos anos 1950, centrou preocupações na pobreza no Terceiro Mundo, em especial na Indochina, defendendo a tese de que há uma causalidade mútua na qual a deficiência educacional e a estrutura social pioram a pobreza e vice-versa. Reforma agrária e redução das desigualdades de renda eram pré-requisitos para erradicar o problema.
Acusado de "burguês reformista" pela esquerda socialista, Myrdal trabalhou na ONU (1947-57) tentando melhorar as relações entre leste e oeste na Europa.
Hoje, é um herói da esquerda (democrática e capitalista) que anda esquecido. Recordá-lo é um bálsamo.

'Terra feliz': Norman Gall e as perdas de oportunidades do Brasil

KENNETH MAXWELL
Norman Gall é um sujeito um tanto rabugento. Eu o conheci na Woodrow Wilson School, na Universidade Princeton, em 1972. Eu fazia parte do Instituto de Estudos Avançados e estava apresentando uma série de estatísticas sobre o comércio de escravos e açúcar no Atlântico ao longo de 300 anos. Mas, em 1974, a revolução portuguesa interveio e tomei outro caminho. Encontrei-me com Gall diversas vezes em Nova York, na metade dos anos 70.
Defino-o como rabugento porque sempre que almoçávamos, ele, invariavelmente, arranjava briga com o garçom.
Gall tem hoje 80 anos. Mudou-se para São Paulo em 1977 e estabeleceu o Instituto Braudel em 1987. Fernand Braudel (1902-1985) foi um dos acadêmicos franceses que fundaram a Universidade de São Paulo, entre 1935 e 1937.
O trabalho dele unia seu interesse pelas tendências de desenvolvimento histórico no longo prazo a microestudos sobre pessoas comuns. Braudel foi prisioneiro de guerra na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial e, no final dos anos 40, em companhia de Lucien Febvre (1878-1956), estabeleceu em Paris a escola dos "Annales", que influenciou profundamente gerações de historiadores.
Norman Gall também é um pesquisador à moda antiga, ou seja, um jornalista que acredita na saída a campo para ver o mundo real. Esteve sempre interessado no contexto histórico dos eventos. Sua escrita ao longo dos anos combinava reportagem detalhada com questões mais profundas sobre significado.
Assim, o que ele tem a dizer sobre o Brasil em seu mais recente "Braudel Paper" (leia o documento em bit.ly/braudel paper) é de um interesse mais do que passageiro --ainda que talvez não seja especialmente palatável aos brasileiros, especialmente na véspera das festividades do Carnaval.
O ano de 2014 será emblemático para o país. Mas Gall adverte que "o Brasil é uma terra feliz porque já teve muitas chances", o que levou a uma tolerância quanto aos repetidos fracassos e produziu um atoleiro institucional, que --se não for enfrentado-- resultará em depreciação da qualidade da vida cotidiana, com a proliferação da violência e deterioração continuada da infraestrutura e das capacidades necessárias para administrar uma sociedade complexa e de escala continental.
Ele vê corrupção endêmica, uma liderança política que personifica o triunfo do localismo, parasitismo fiscal, inflação em disparada, rigidez institucional nos mercados de trabalho e produtividade estagnada.
O Brasil precisa urgentemente de uma nova estratégia, argumenta Gall: "Aprender mais e fazer mais". Um conselho rabugento de um amigo muito bem informado.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Humorístico tailandês satiriza crise política

Por THOMAS FULLER
BANCOC, Tailândia - Em um de seus programas recentes, os apresentadores de "Notícias Superficiais em Profundidade" convidaram três dançarinas vestidas no estilo da corte real tailandesa da antiguidade para oferecer uma homenagem musical ao comandante do Exército tailandês -um gesto de apreciação pela aparente recusa dele em lançar um golpe de Estado.
Rebolando ao som de uma canção que não tinha qualquer relação com o assunto, o elenco jogou beijos para a câmera e gritou: "Amamos você, chefe do Exército! Beijinho, beijinho!"
Fundado por dois tailandeses de origem parcialmente americana, "Notícias Superficiais em Profundidade" é um programa semanal de baixo orçamento publicado no YouTube. O programa, que está no ar há cinco anos, emprega um tipo de humor que não é comum na Tailândia -o sarcasmo acirrado.
Com a intensificação da crise, sua audiência chegou a centenas de milhares de pessoas. "Se você levar a sério tudo o que acontece na sociedade tailandesa, enlouquecerá", disse um dos apresentadores, Winyu Wongsurawat. Ironia é algo que não falta na Tailândia. Um bilionário é louvado como defensor dos pobres. Um político envolvido em escândalos lidera um movimento de massas contra a corrupção. Manifestantes declaram que precisam impedir eleições para salvar a democracia.
Winyu fundou o programa com sua irmã, Janya Wongsurawat, a principal roteirista. Eles dizem que produzir o programa é uma espécie de terapia cômica para superar uma crise que vem destruindo amizades, rachando famílias e provocando hipertensão em um país antes conhecido pelos sorrisos suaves e pelo pendor pela conciliação.
Os manifestantes em Bancoc prometem derrubar o governo e expulsar da vida política tailandesa a primeira-ministra, Yingluck Shinawatra, e seu bilionário irmão, o ainda influente ex-premiê Thaksin Shinawatra, cujas políticas populistas o converteram em herói para muitos pobres desse país. Eles se opõem à eleição atual e estão fazendo tudo o que podem para frustrá-la. Os manifestantes impediram pessoas de votar em muitos distritos, criando confusão suficiente para atrasar o processo eleitoral por semanas ou até meses.
Enquanto isso, a Tailândia está paralisada e o governo não funciona plenamente. Os membros do elenco de "Notícias Superficiais em Profundidade" dizem que são xingadores em favor da igualdade de oportunidades. O programa ironiza os manifestantes por se descreverem como "a grande massa do povo", ao mesmo tempo em que bloqueavam eleições que sabiam que iriam perder. Zomba do hábito deles de fazer "selfies" a todo momento enquanto protestam.
O programa mostra Thaksin -autoexilado desde que foi deposto em um golpe militar em 2006- como satélite que orbita o país. E faz brincadeiras constantes com as guerras de cores do país. Os partidários de Thaksin são conhecidos como os camisas vermelhas, e o movimento para afastá-lo foi liderado pelos chamados camisas amarelas. Para deixar claro que não toma partido, Winyu certa vez fez uma entrevista sem camisa.
"Não temos a intenção de ser levados a sério", disse. "Somos palhaços, nada mais."
No entanto, por baixo da sátira e do sarcasmo constantes percebem-se fortes doses de crítica social e aulas de civismo.
Filhos de um cientista político que conheceu sua mulher, também professora universitária, quando estudava nos EUA, Winyu e Janya não têm medo de encarar temas potencialmente entediantes. Em novembro, a Corte Constitucional tailandesa afirmou que uma emenda que transformaria o Senado de organismo parcialmente eleito em um plenamente eleito era uma tentativa de "derrubar" a democracia. Naquela semana, o programa mergulhou numa aula sobre a separação dos poderes entre o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. Nattapong Tiendee, outro apresentador do programa, disse que "Notícias Superficiais" tem uma mensagem a transmitir.
"Mas precisa transmiti-la de uma maneira leve."
Fonte: NYT, 18.02.2014
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quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Limites do humor

HÉLIO SCHWARTSMAN
SÃO PAULO - Até onde o humor pode ir? Vale gozar da religião dos outros? E quanto a piadas francamente racistas, sexistas e homofóbicas? Sou da opinião de que, enquanto o alvo das pilhérias são instituições e mesmo grupos, vale tudo. Balanço um pouco quando a vítima é uma pessoa física específica, hipótese em que talvez caiba discutir alguma forma de indenização.
Tendemos a ver o humor como um aspecto lateral e até menor de nossas vidas, mas isso é um erro. Ele desempenha múltiplas funções sociais, algumas delas bastante importantes, ainda que não muito visíveis. O filósofo Henri Bergson, por exemplo, observou que o temor de tornar-se objeto de riso dos outros reprime as excentricidades mais salientes do indivíduo. O humor funciona aqui como uma espécie de superego social portátil. Nisso ele até se parece com as religiões, só que vai muito além.
O psicólogo evolucionista Steven Pinker atribui aos gracejos a propriedade de azeitar as relações sociais. O tom de brincadeira nos permite comunicar de modo amigável a um interlocutor uma informação que, de outra maneira, poderia ser interpretada como hostil. Isso pode não apenas evitar o conflito como ainda dar início a uma bela amizade.
Talvez mais importante, o humor é uma formidável arma que os mais fracos podem usar contra os mais fortes. O riso coletivo é capaz de sincronizar reações individuais, o que o torna profundamente subversivo. As piadas que se contavam no Leste Europeu sobre as agruras do socialismo, por exemplo, ao possibilitar que as pessoas revelassem suas desconfianças em relação aos governos sem expor-se em demasia, contribuíram decisivamente para a derrocada dos regimes comunistas que ali vigiam.
Temos aqui três excelentes razões para deixar o humor tão livre de amarras legais quanto possível. Quem não gostar de uma piada sempre pode protestar, dizer que não teve graça ou até caçoar de volta.
Fonte: Folha, 22.01.2014.
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terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Uncommon success of  ‘Common Man’ party upends India politics - By Amy Kazmin in New Delhi


Just a few weeks ago, Adarsh Shastri was a highly paid Mumbai-based executive for Apple, overseeing the tech company’s sales in India’s western region. Then Mr Shastri, son and grandson of Congress party stalwarts, quit his corporate job to throw in his lot with India’s year-old Aam Aadmi party, which has promised radical reforms of India’s corrupt and sluggish political system.
“The mood of the people is changing – young people want . . . responsive government,” Mr Shastri told Indian TV explaining his move. “They understand India is a big country and it will take time to change . . . but they want to see intent. The Aam Aadmi party is the first party in a long time that has been able to show the intent.”

Mr Shastri is not alone in his enthusiasm for the newest entrant to India’s political scene. The Aam Aadmi, or “Common Man”, party’s unexpectedly strong performance in recent state assembly elections in Delhi – and its subsequent formation of the local government – has electrified many urban Indians, now putting their money, time and enthusiasm behind the party as it gears up to battle parliamentary polls.
As donations pour in and volunteers join up across India, questions are being raised about whether the anti-corruption party, led by former tax inspector Arvind Kejriwal, could play spoiler for Narendra Modi, the Bharatiya Janata party’s controversial prime ministerial aspirant, who has been seen as the most likely successor to the beleaguered incumbent Congress premier, Manmohan Singh.
“Is 2014 the year of the Unthinkable?” The Economic Times asked in a New Year’s day editorial, which raised the prospect of the AAP winning 70 to 80 seats in the general election, then forming the core of a new non-Congress, non-BJP coalition government with regional parties.
The newspaper noted that such a scenario seemed “impossible, almost insane”, but then observed that “the anti-establishment mood today is strong and the AAP has generated such euphoria among youngsters and the middle class that India may be at an inflection point”.

Few analysts realistically expect such an outcome, but many believe the AAP could affect the results in enough of India’s urban parliamentary constituencies to undermine the ability of Mr Modi, and the BJP, to form a government after the polls.
“Modi is still the frontrunner but Arvind Kejriwal could damage him in 20 to 30 seats,” said Ashok Malik, a New Delhi-based political commentator. “It could be all the difference between the BJP finishing as the single largest party, or the single largest party without enough seats to run the government.”
Mr Modi, the ambitious chief minister of Gujarat state, was expected to be the biggest beneficiary of Indian voters’ deep frustration with the incumbent Congress government led by the hapless Mr Singh, and the lack of enthusiasm for Rahul Gandhi, the ruling party’s heir apparent, a scion of the Nehru-Gandhi dynasty.
Indeed, Mr Modi’s ascendancy to the premiership was acquiring an aura of inevitability – in spite of some voters’ qualms about his reputation as a Hindu hardliner, as the fiery orator barnstormed the country in recent months, denouncing the Congress and its shahzada, or crown prince, at huge rallies.
But the AAP’s success in Delhi’s state polls has upended previous political certainties. In Delhi, the party struck a strong chord among voters, rich and poor, united in their fury over the dire state of India’s public infrastructure and services – and clamouring for more radical change than they believed any establishment political party could bring.
“It’s a revolt against officialdom and highhandedness,” sociologist and author Dipankar Gupta said of the public support for the AAP. “It’s the same kind of thing you saw in Tahrir Square and Tunisia, but not against one dictator. It’s against 1,000 tyrants that parade around in the garb of democracy.”
Pratap Bhanu Mehta, president of New Delhi’s Centre for Policy Research, wrote that the AAP’s success had helped overcome the “corrosive cynicism” many Indians had come to feel about their democracy. “The AAP’s single biggest achievement has been to change the mood of significant sections of the country,” he wrote.
In spite of the frisson that its success in Delhi has created, the AAP will face a tough task to replicate its Delhi success at national level, or even in other Indian cities, given its limited time and funds.
In recent weeks, the AAP, which has promised transparent campaign financing, has raised nearly Rs50m ($800,000), including from voters in remote areas, some offering sums as small as 10 or 20 rupees. But its war chest is still tiny compared with the resources available to established political parties, with their deep-pocketed but anonymous corporate supporters.
The AAP has also admitted that it lacks sufficient time adequately to screen potential parliamentary candidates, raising the concerns that overly rapid expansion could end up tarnishing the party’s image. Missteps by Mr Kejriwal’s new administration in Delhi could also affect its allure.
The AAP also faces the challenge of competing with the charismatic Mr Modi – the humble tea-vendor’s son, who rose to become chief minister of his own state, and now promising to shake up India’s established order
“When Modi stands up and says, ‘I understand poverty because it’s my experience’, that’s a compelling narrative,” said Mr Malik. “Kejriwal represents the anger of the little man. Both are appealing to outsiders.”
As the AAP, and Mr Modi, race to woo supporters, clearly there is still all to play for. As Mr Mehta wrote: “There is little doubt that 2014 will belong to the party that can most successfully capitalise on the yearning to overcome cynicism. A major political realignment is in the air.”

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